terça-feira, 12 de novembro de 2019

Refém!

Eis que então fui procurada para escrever sobre rebeliões e violência em Unidades Prisionais Femininas – já que tive experiência pessoal como refém em uma Penitenciária Feminina. Não sou feminista, sexista, mas também não sou falsa moralista. Gosto da ideia de um destaque às ações femininas no Sistema Prisional. Como minoria, nós Agentes que estamos ou estivemos em Unidades Femininas, por vezes somos vistas como uma exceção ou anomalia, como se fosse algo fora do pacote do sistema. Não é! Para quem não teve a experiência de trabalhar numa Penitenciária Feminina, creiam quando eu digo: trata-se de estruturação complexa, violência complexa, ações complexas. Nada é simples numa Penitenciária Feminina, nada é fácil, nada é delicado. É coisa bruta, sim senhor!  As sentenciadas são agressivas, abandonadas, carentes e, por vezes, muito violentas. É sempre um curto estopim controlando a bomba – “isqueirou”, explode! Mas não é essa a questão agora, ainda que a afirmação seja justificada pelo contexto do assunto.
Pois é, já fiquei refém! Contou-me uma colega que soube do fato por intermédio da minha mãe, que conheceu em uma reunião do Conselho de Segurança. Disse-me que ao comentar sobre o fato, minha mãe se emocionou e chorou ao lembrar da cena em que eu levava golpes na cabeça. Deve ser muito ruim descobrir que sua filha está nessa situação assistindo uma filmagem jornalística de televisão, que transmitia tudo ao vivo de um helicóptero. Imagino o quanto chocante seja e como isso marca.
Marcas! Alguns fatos prisionais causam marcas que “civis” talvez nunca sintam ou sequer imaginem que exista. Não saímos ilesos do sistema prisional, somos modificados por ele. O comentário da colega me fez pensar sobre algo que já havia refletido, mas deixado passar: essas modificações se estendem e refletem em nossa família, de maneira que talvez também a eles marquem. E isso é algo muito relevante que devemos discutir. As marcas, suas extensões e reflexos na nossa vida e na vida de quem não tem escolha (a escolha foi nossa e não de nossos entes).
Mas enfim, o texto é para falar sobre ser refém em uma rebelião num Presídio Feminino. Essa ênfase é necessária, visto que muitos pensam que mulheres não fazem rebelião, não são violentas, não provocam riscos. Olha, tenho algumas fotos e lembranças que mostram uma condição muito contrária ao imaginário prisional.
Vou resumir tudo em um momento: em fevereiro de 2006, com seis meses no sistema prisional, depois de muito apanhar na frente de testemunhas ilustres, Diretores, Coordenador da capital, GIR, lá estava eu, vestida com uniforme de presa, algemada, encapuzada, ajoelhada no pátio do pavilhão II da Penitenciária Feminina de Santanna, com uma faca firmemente posicionada no meu pescoço. Uma presa segurava a minha cabeça erguida e eu apenas ouvia a sua voz: “e aí, tá autorizado?”. Ali naquele instante eu não pensava mais se ia morrer, mas apenas torcia para que a faca estivesse boa e o corte fosse preciso, pra que eu não ficasse muito tempo estrebuchando no chão.
Dias depois do ocorrido, em atendimento com a psicóloga do Núcleo de Atendimento ao Servidor (naquela época havia um de verdade, com acolhimento real para esses momentos de crise), eu dizia que não entendia como eu estava viva. “Como assim eu não morri?”. Por um tempo, foi estranho viver após uma certeza tão cruel e iminente de morte. É disso que mais lembro, dessa sensação estranha de não saber mais o que eu estava fazendo ali. Disse a psiquiatra que era uma condição de pré Síndrome do Pânico. E falando nisso, me ocorre que não tive pânico em nenhum momento de refém. Estava cruelmente lúcida e calma. Não chorei, não gritei, não implorei, não abri a boca. Só não me perguntem porquê: não tenho lições ou conclusões para oferecer. E a vida seguiu.
Em 2012, depois de anos sem conversar sobre o assunto, estava sentada na mesa de reuniões na sala da Diretora da Penitenciária Feminina de Pirajuí, onde então estava em exercício, e comentei dessa cena da rebelião. A Diretora riu, mas eu percebi que era um riso de nervoso, de choque. O assunto surgiu porque ali também estava outra colega que estava no dia da rebelião, noticiando que foi refém. A risada desta não foi nem de nervoso, nem de choque. Ela achou engraçado eu ter dito que fiquei com medo de ficar estrebuchando.
É curioso falar sobre os desdobramentos de uma rebelião, depois de anos ocorrida. Olhar uma colega dizer que ficou refém sem ter ficado. Eu acho isso um fetiche tanto quanto estranho, meio doentio. Uma vez me disseram que em um de seus “depoimentos” ela disse que apanhou tanto que teve que fazer cirurgia para corrigir o rosto e colocar prótese dentária. Observo que quem de fato passou por uma situação em que ficou refém não se vangloria disso. Não somos heróis, não somos exemplos vivos de coragem ou sabedoria. E também não me acho a suprassuma por ter voltado a trabalhar e seguir carreira, como se isso fosse algo a ser elogiado. Não coloquei isso no meu Curriculum Vitae, nem carrego bandeiras ou ostentações. Não sou diferenciada por isso, nem aceitaria ser tratada de forma diferente, como se tal fosse um privilégio ou regalia. Não é!
Creio que quando a colega me pediu um depoimento, esperava algo mais acalorado. Talvez detalhes da luta do bem contra o mal, minha intuição ninja em perceber que algo estava diferente, as ações de negociação, o resgate. Talvez quisesse que eu demonstrasse o quanto as Unidades Femininas são também perigosas, que as presas são tão bandidas quanto os presos, e que Agentes de Segurança Penitenciária Feminina não são inferiores em sua valentia e garra – não são!! Mas acho que não sei muito falar de rebeliões e reféns como um ‘marketing’ para a categoria, uma mostra de quanto somos especiais. Nós somos especiais, homens e mulheres do Sistema Prisional, mas não por estarmos expostos a sermos reféns, a apanhar, a morrer. Somos especiais justamente porque, em maioria, conseguimos NÃO ser pegos. E isso é a minha maior razão de parabéns aos meus colegas Agentes.
Às colegas de Penitenciárias Femininas, guerreiras de fato em uma árdua carreira na qual parecemos invisíveis, minhas mais sinceras honras e homenagens. Mulheres garridas que dia-a-dia seguram o touro a unha, muitas vezes longe de casa, negligenciadas nas peculiaridades de mãe e esposa. Tudo isso fica para trás quando entramos de cabeça erguida num Pavilhão Habitacional, pois sabemos a relevância do que fazemos e nos sentimos orgulhosas disso. Parabéns e muito obrigada por continuar! Tenho orgulho de vocês – e de fazer parte disso!
P.S. Eu tinha razão: a colega não gostou do texto!


8 comentários:

  1. Uauuu... Que texto/depoimento/ desabafo/história fantástica!! Corajosa e lúcida, como você demonstra ser. Parabéns Andrea, pela postura digna e merecedora de todo respeito e admiração!!

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  2. Seu depoimento é arrepiante, divino, triste e angustiante. Parabéns minha amiga...eu, você e todas nós somos realmente guerreiras...obrigada pelo texto!

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  3. UAU, CHEGA A ME DAR ARREPIOS IRMANITA!LEMBRO ME EXATAMENTE O OCORRIDO, A AFLIÇÃO QUE SENTIMOS..DEPOIS O ALIVIO QDO VC RESPONDEU QUE ESTAVA BEM,DEPOIS O A PERPLEXIDADE QDO CONVERSAMOS E VC CONTANDO O FATO E CLARO COM ECONOMIA DE PALAVRAS MAS SEUS OLHOS ENTREGAVAM SEU PANICO,SUA INDIGNAÇÃO SEU MEDO,SEU ALIVIO,SUA RAIVA...CARA NA BOA....TRABALHINHO FDP ESTE SEU!JA FALAMOS A RESPEITO, E TE ADMIRO E MUITO POR SUA POSTURA, ÍNDOLE E CORAGEM.DIFICÍLIMO ANALISAR DE FORMA GENERALIZADA.POIS, AMBOS OS LADOS TEM A SUA HISTÓRIA,NO ENTANTO FICO SEMPRE DO LADO PACIFICADOR.E CONFESSO TER ME REVOLTADO O QUE HOUVE, COMO ASSIM COM A IRMANITA?LOGO COM ELA CALMA TRANQUILA DA PAZ?EM TÃO POUCO TEMPO?HORA ERRADA, LOCAL ERRADO COM PESSOAS ERRADAS?ENFIM SEI QUE ESTE FATO FEZ ME AMA LA AINDA MAIS E RESPEITA LA AINDA MAIS,POIS NUNCA OUVI DE SUA BOCA SEQUER UMA MENÇÃO DE ÓDIO.TE ADMIRO E SINTO PELAS DETENTAS TEREM ESCOLHIDO O CAMINHO DA VIOLENCIA AO INVEZ DO DIALOGO,COM CERTEZA ELAS PERDERAM E MUITO EM NÃO LHE DAR ESTA CHANCE.BJOS DE LUZ.PERFEITO SEU TEXTO

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  4. Nunca trabalhei em feminina.
    Confesso que me emocionei.
    Não sabia que vc tinha passado por isso.
    Grande abraço.

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    1. Muito obrigada!
      Realmente não é algo que eu comente!!
      Abraços

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