Eis que
então fui procurada para escrever sobre rebeliões e violência em Unidades
Prisionais Femininas – já que tive experiência pessoal como refém em uma
Penitenciária Feminina. Não sou feminista, sexista, mas também não sou falsa
moralista. Gosto da ideia de um destaque às ações femininas no Sistema
Prisional. Como minoria, nós Agentes que estamos ou estivemos em Unidades
Femininas, por vezes somos vistas como uma exceção ou anomalia, como se fosse
algo fora do pacote do sistema. Não é! Para quem não teve a experiência de
trabalhar numa Penitenciária Feminina, creiam quando eu digo: trata-se de
estruturação complexa, violência complexa, ações complexas. Nada é simples numa
Penitenciária Feminina, nada é fácil, nada é delicado. É coisa bruta, sim
senhor! As sentenciadas são agressivas,
abandonadas, carentes e, por vezes, muito violentas. É sempre um curto estopim
controlando a bomba – “isqueirou”, explode! Mas não é essa a questão agora,
ainda que a afirmação seja justificada pelo contexto do assunto.
Pois é,
já fiquei refém! Contou-me uma colega que soube do fato por intermédio da minha
mãe, que conheceu em uma reunião do Conselho de Segurança. Disse-me que ao
comentar sobre o fato, minha mãe se emocionou e chorou ao lembrar da cena em
que eu levava golpes na cabeça. Deve ser muito ruim descobrir que sua filha
está nessa situação assistindo uma filmagem jornalística de televisão, que
transmitia tudo ao vivo de um helicóptero. Imagino o quanto chocante seja e
como isso marca.
Marcas!
Alguns fatos prisionais causam marcas que “civis” talvez nunca sintam ou sequer
imaginem que exista. Não saímos ilesos do sistema prisional, somos modificados
por ele. O comentário da colega me fez pensar sobre algo que já havia
refletido, mas deixado passar: essas modificações se estendem e refletem em
nossa família, de maneira que talvez também a eles marquem. E isso é algo muito
relevante que devemos discutir. As marcas, suas extensões e reflexos na nossa
vida e na vida de quem não tem escolha (a escolha foi nossa e não de nossos
entes).
Mas
enfim, o texto é para falar sobre ser refém em uma rebelião num Presídio
Feminino. Essa ênfase é necessária, visto que muitos pensam que mulheres não fazem
rebelião, não são violentas, não provocam riscos. Olha, tenho algumas fotos e
lembranças que mostram uma condição muito contrária ao imaginário prisional.
Vou
resumir tudo em um momento: em fevereiro de 2006, com seis meses no sistema
prisional, depois de muito apanhar na frente de testemunhas ilustres,
Diretores, Coordenador da capital, GIR, lá estava eu, vestida com uniforme de
presa, algemada, encapuzada, ajoelhada no pátio do pavilhão II da Penitenciária
Feminina de Santanna, com uma faca firmemente posicionada no meu pescoço. Uma
presa segurava a minha cabeça erguida e eu apenas ouvia a sua voz: “e aí, tá
autorizado?”. Ali naquele instante eu não pensava mais se ia morrer, mas apenas
torcia para que a faca estivesse boa e o corte fosse preciso, pra que eu não
ficasse muito tempo estrebuchando no chão.
Dias
depois do ocorrido, em atendimento com a psicóloga do Núcleo de Atendimento ao
Servidor (naquela época havia um de verdade, com acolhimento real para esses
momentos de crise), eu dizia que não entendia como eu estava viva. “Como assim
eu não morri?”. Por um tempo, foi estranho viver após uma certeza tão cruel e
iminente de morte. É disso que mais lembro, dessa sensação estranha de não
saber mais o que eu estava fazendo ali. Disse a psiquiatra que era uma condição
de pré Síndrome do Pânico. E falando nisso, me ocorre que não tive pânico em
nenhum momento de refém. Estava cruelmente lúcida e calma. Não chorei, não
gritei, não implorei, não abri a boca. Só não me perguntem porquê: não tenho
lições ou conclusões para oferecer. E a vida seguiu.
Em
2012, depois de anos sem conversar sobre o assunto, estava sentada na mesa de
reuniões na sala da Diretora da Penitenciária Feminina de Pirajuí, onde então
estava em exercício, e comentei dessa cena da rebelião. A Diretora riu, mas eu
percebi que era um riso de nervoso, de choque. O assunto surgiu porque ali
também estava outra colega que estava no dia da rebelião, noticiando que foi
refém. A risada desta não foi nem de nervoso, nem de choque. Ela achou
engraçado eu ter dito que fiquei com medo de ficar estrebuchando.
É
curioso falar sobre os desdobramentos de uma rebelião, depois de anos ocorrida.
Olhar uma colega dizer que ficou refém sem ter ficado. Eu acho isso um fetiche
tanto quanto estranho, meio doentio. Uma vez me disseram que em um de seus “depoimentos”
ela disse que apanhou tanto que teve que fazer cirurgia para corrigir o rosto e
colocar prótese dentária. Observo que quem de fato passou por uma situação em
que ficou refém não se vangloria disso. Não somos heróis, não somos exemplos
vivos de coragem ou sabedoria. E também não me acho a suprassuma por ter
voltado a trabalhar e seguir carreira, como se isso fosse algo a ser elogiado. Não
coloquei isso no meu Curriculum Vitae,
nem carrego bandeiras ou ostentações. Não sou diferenciada por isso, nem
aceitaria ser tratada de forma diferente, como se tal fosse um privilégio ou
regalia. Não é!
Creio
que quando a colega me pediu um depoimento, esperava algo mais acalorado.
Talvez detalhes da luta do bem contra o mal, minha intuição ninja em perceber
que algo estava diferente, as ações de negociação, o resgate. Talvez quisesse
que eu demonstrasse o quanto as Unidades Femininas são também perigosas, que as
presas são tão bandidas quanto os presos, e que Agentes de Segurança
Penitenciária Feminina não são inferiores em sua valentia e garra – não são!!
Mas acho que não sei muito falar de rebeliões e reféns como um ‘marketing’ para
a categoria, uma mostra de quanto somos especiais. Nós somos especiais, homens e mulheres do Sistema Prisional, mas não
por estarmos expostos a sermos reféns, a
apanhar, a morrer. Somos especiais
justamente porque, em maioria, conseguimos NÃO ser pegos. E isso é a minha
maior razão de parabéns aos meus colegas Agentes.
Às
colegas de Penitenciárias Femininas, guerreiras de fato em uma árdua carreira
na qual parecemos invisíveis, minhas mais sinceras honras e homenagens. Mulheres
garridas que dia-a-dia seguram o touro a unha, muitas vezes longe de casa,
negligenciadas nas peculiaridades de mãe e esposa. Tudo isso fica para trás
quando entramos de cabeça erguida num Pavilhão Habitacional, pois sabemos a
relevância do que fazemos e nos sentimos orgulhosas disso. Parabéns e muito
obrigada por continuar! Tenho orgulho de vocês – e de fazer parte disso!
P.S. Eu tinha razão: a
colega não gostou do texto!
Uauuu... Que texto/depoimento/ desabafo/história fantástica!! Corajosa e lúcida, como você demonstra ser. Parabéns Andrea, pela postura digna e merecedora de todo respeito e admiração!!
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirSeu depoimento é arrepiante, divino, triste e angustiante. Parabéns minha amiga...eu, você e todas nós somos realmente guerreiras...obrigada pelo texto!
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirUAU, CHEGA A ME DAR ARREPIOS IRMANITA!LEMBRO ME EXATAMENTE O OCORRIDO, A AFLIÇÃO QUE SENTIMOS..DEPOIS O ALIVIO QDO VC RESPONDEU QUE ESTAVA BEM,DEPOIS O A PERPLEXIDADE QDO CONVERSAMOS E VC CONTANDO O FATO E CLARO COM ECONOMIA DE PALAVRAS MAS SEUS OLHOS ENTREGAVAM SEU PANICO,SUA INDIGNAÇÃO SEU MEDO,SEU ALIVIO,SUA RAIVA...CARA NA BOA....TRABALHINHO FDP ESTE SEU!JA FALAMOS A RESPEITO, E TE ADMIRO E MUITO POR SUA POSTURA, ÍNDOLE E CORAGEM.DIFICÍLIMO ANALISAR DE FORMA GENERALIZADA.POIS, AMBOS OS LADOS TEM A SUA HISTÓRIA,NO ENTANTO FICO SEMPRE DO LADO PACIFICADOR.E CONFESSO TER ME REVOLTADO O QUE HOUVE, COMO ASSIM COM A IRMANITA?LOGO COM ELA CALMA TRANQUILA DA PAZ?EM TÃO POUCO TEMPO?HORA ERRADA, LOCAL ERRADO COM PESSOAS ERRADAS?ENFIM SEI QUE ESTE FATO FEZ ME AMA LA AINDA MAIS E RESPEITA LA AINDA MAIS,POIS NUNCA OUVI DE SUA BOCA SEQUER UMA MENÇÃO DE ÓDIO.TE ADMIRO E SINTO PELAS DETENTAS TEREM ESCOLHIDO O CAMINHO DA VIOLENCIA AO INVEZ DO DIALOGO,COM CERTEZA ELAS PERDERAM E MUITO EM NÃO LHE DAR ESTA CHANCE.BJOS DE LUZ.PERFEITO SEU TEXTO
ResponderExcluirbeijos, irmanita!
ExcluirNunca trabalhei em feminina.
ResponderExcluirConfesso que me emocionei.
Não sabia que vc tinha passado por isso.
Grande abraço.
Muito obrigada!
ExcluirRealmente não é algo que eu comente!!
Abraços